terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O processo da sublimação de excelência no homossexualismo ideativo

SÍNTESE:



         O homossexualismo, considerado classicamente como uma perversão, merecia um estudo sério que demonstrasse suas afinidades e incompatibilidades com a clínica psicanalítica.


         Tomando como ponto de partida a pertinência de estruturações homossexuais masculinas ao o mundo de trabalho criativo, ou a sublimação, resolvemos pesquisar as relações entre essas duas categorias.


         Estudamos, assim, dois modelos de homossexualismo masculino que mostraram vincular-se à duas formas de criatividade distintas. Coube-nos, então reconstruir os conceitos implicados em nossa investigação.


         Definimos, dessa forma, a sexualidade de Leonardo da Vinci como um homossexualismo onde a idéia e a pulsão de espiar ocuparam uma funcão central: homossexualismo ideativo.


         A sublimação correspondente, pelo perfeccionismo imagético nela envolvido, foi por nós denominada de sublimação de excelência.


         Numa análise comparativa, tomamos como referência o, também italiano e pintor, Caravaggio. O mesmo caracterizou-se por um exercício sexual intenso, um engajamento com seu sintoma e uma tendência à auto-destruição.          Seu modo criativo apresenta características absolutamente revolucionárias mas é insuficiente para suspender um caminho de “nadificação”.


         No presente artigo esploraremos, principalmente, o psiquismo e a atividade sublimante de Leonardo da Vinci.


          As cores de uma Itália renascentista e pós-renascentistas foram musas deste trabalho.







Introdução:



         O presente artigo é um resumo simplificado de nossa tese de doutorado, defendida na Université Paris XIII, em julho de 1999. A defesa contou com a presidência de Paul-Laurent Assun, Jacqueline Lanouzière (orientadora), Jean-Jacques Rassial e Christian Hoffman.


 
         Tradicionalmente a clínica psicanalítica é uma clínica das neuroses. Nós fomos conduzidos a trabalhar o conceito de homossexualismo masculino tentando problematizar a inserção dessa categoria no registro das perversões, posto que nossa prática analítica indicou afinidades dessa posição subjetiva com o discurso psicanalítico. Movimentar essa questão revelou-se, então, como uma tentativa de ampliar o campo da clínica analítica. O enorme preconceito de uma boa parte dos psicanalistas, diretamente proporcional à defesa ante uma bissexualidade infantil, instigou nossa pesquisa.


         Ao mesmo tempo, impressionava-nos o fato de que o estudo freudiano mais aprofundado sobre o homossexualismo, Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci, consistisse no seu único trabalho exaustivo sobre a sublimação. Uma reflexão séria sobre a sublimação colocou-se, assim, como um fator aparentemente importante nas estruturações homossexuais. Resolvemos seguir a pista do mestre.


         Ao longo de nossa pesquisa, percebemos que não caberia referirmo-nos à um único modelo de homossexualismo. O trabalho de Freud sobre Leonardo contem certo universais mas, principalmente, o singular que nos induz a trabalharmos caso por caso. Nem todos possuem a centelha da genialidade leonardiana...


         Levando em conta essas questões, tivemos a alternativa de investigar o inverso do homossexualismo ideativo de Leonardo e um tipo de “sublimação” completamente diferente através do, também italiano e pintor, Caravaggio. Entretanto, apesar das grandes diferenças morais entre os dois, nosso estudo demonstrou que ambos participariam da mesma estrutura psíquica, a perversão. Vale ressaltar de que nada adianta considerar essa estrutura como a nova ( ou já velha?) criança maldita da psicanálise. No presente artigo vamos abordar, principalmente, Leonardo.


         Um modelo de homossexualismo neurótico é fortemente defendido por Freud. O critério que nos permite isolar a perversão é o horror diante da genitália feminina, horror feminae. No seu estudo de 1923 sobre ciúme, a paranóia e o homossexualismo, Freud reformula as bases da explicação do homossexualismo, fazendo-o sair da díade mãe-criança para incluí-lo no complexo paterno, como resultante da renúncia à concorrência com o pai pelo amor da mãe. No caso, é um excesso de deferência, de respeito ou angústia em relação ao pai que determinam a futura escolha homossexual. A antiga rivalidade com os irmãos inverte-se em amor e fornece as bases do modelo de objeto. A mulher não fálica é também erotisada nesse caso. Até onde vai nosso conhecimento, Lacan não seguiu essa trilha freudiana e considerou o homossexualismo como perversão ao longo de seu ensinamento, o que ele deixa claro no Seminário VIII. Convidamos os interessados à investigarem esse ponto e a dialogarem conosco.


         Não diríamos o homossexualismo, mas o transexualismo possui um terreno fértil de estudo através das considerações freudianas e lacanianas sobre o delírio paranóico do homem.



Leonardo da Vinci e a sublimação:



         Pode-se dizer que Leonardo teve como referência psíquica principal a trindade humaníssima, composta por Ana, a Virgem Maria e Jesus e não a trindade diviníssima, que inclui o Pai, o Filho e o Espírito-Santo.


         Leonardo apoiou-se nessa conjuntura para desenvolver um homossexualismo ideativo e uma sublimação de excelência. O germe de seu homossexualismo foi o fato dele substituir à si, em sua relação com a mãe, os futuros amados. Resulta daí uma identificação materna onde a castração é desmentida. O falo da mãe passa a ser um ponto de intercessão entre entre o homossexualismo ideativo, a perversão e a sublimação. A excelência de sua sublimação advém das trocas especulares com esse Outro compósito, ilustrado pela Dama do amor cortês.


         A criação incansável do Belo é uma resposta defensiva ante o horror de castração. “A construção harmoniosa de uma beleza visível constituia (para Leonardo) a saída e a resposta-tela (impessoal, universal e verdadeira) as interrogações suscitadas pela origem da causa primeira de sua existência[1]”. Vê-se, assim, o ideativo como indissociável de uma concepção defensiva do Belo.


         Ligada à dimensão narcísica do eu, a sublimação evoca seu caractere de bela totalidade circunferencial. Vai nesse sentido a leitura lacaniana de Leonardo. A sublimação de excelência constitui-se, assim, como uma relação de miragem. Sua riqueza advém das trocas imaginárias entre o eu e o pequeno outro. A lei vem de uma linha maternal onde é a mãe da mãe, ilustrada por Ana, que vai constituir o lugar do ideal do eu ( conferir o quadro do Louvre Sainte Anne, la Vierge et l’enfant Jesus).


         O método da sublimação de Leonardo valoriza a busca do perfeccionismo de um pensamento organizado pelo Imaginário. Esse método implica o máximo de consciência possível. O pensamento segue uma lei de continuidade onde os representantes relacionam-se entre si numa perspectiva infinita. A contrário de Freud, nós diríamos com Valéry, Lacan e Arasse que há uma continuidade entre o Leonardo artista e o Leonardo cientista. Ele manteve a perspectiva do artesão: savoir-faire e conhecimento intuitivo.


         Como bem avaliou Paul Valéry, o pensamento de Leonardo, a sua capacidade de transitar entre os diferentes pólos psíquicos por identificações múltiplas, revelam um grande controle do equilíbrio e um talento para manter durante um certo tempo figuras de pura instabilidade na representação.


         Por outro lado seus trabalhos tinham como objetivo uma resolução concreta. Ele trabalhou sobre construções ou fabricações. Nesse contexto, a solidão implica uma economia de talento que não deixa de evocar um circuito amoroso narcísico: “Se tu és só, tu serás todo a ti[2]”.


         Leonardo ambicionou abraçar o todo. Para ele toda parte tenderia a formar o todo. Essa fórmula inscreve-se na sua busca de perfeição.


         Nesse caso a pulsão de espiar demonstra-se bastante desenvolvida. A contemplação é o veículo do olho amante.


         Desenhar e tomar posição nos diferentes pólos possíveis e contraditórios do pensamento, teriam sido duas características de sua inteligência que indicam a presença do mecanismo de clivagem do eu. O aspecto infinito de suas pesquisas mantiveram uma relação com os reflexos infinitos de dois espelhos colocados frente à frente.


         A sublimação apresentada por Leonardo e a perversão tem em comum o risco, a audácia. Por outro lado a experiência sublimante visa suspender o desejo na experiência estética. O Belo marca uma parada, um limite. Em Leonardo, o Belo teria sido um fetiche que lhe marcou um limite, um represamento, de acordo com a fórmula proposta por Lacan: “Não toque no Belo”.


         No que concerne à articulação do desejo em Leonardo, o sorriso ocupa um lugar maior. Podemos considera-lo como um dos objetos de desejo de Leonardo, em tudo aquilo que ele possui de enigmático: um sorriso que suspende a diferença sexual.


         Vale à pena ressaltar que a presença desse sorriso reaparece na sua pintura aos cinquenta anos, a mesma idade que contava seu pai quando morto. Se consideramos a morte do pai como fundamental à dimensão simbólica, vemos que aquilo que Freud postula como um retorno do desejo, vai fazer seus efeitos nessa ocasião. Leonardo teria esperado até aí para poder fazer sair seu desejo de um embotamento. Devemos, assim, remarcar que no ideal do eu compósito (bissexual?) de Leonardo os traços do pai puderam fazer retorno. Neste contexto, o sorriso articula-se à um fantasma andrógino, no dizer de Freud, da “reunião feliz do masculino e do feminino”.


         Leonardo apresenta entretanto uma elaboração de seu fantasma onde ele sai da conjugação inicial, ser batido na boca pelo falo da mãe. Ele redimensiona assim a perspectiva alienante do fantasma e opera uma separação do objeto primordial, ilustrada com a fusão onírica entre as duas mães no desenho de Londres. É a pintura que lhe fornece os meios desse renascimento como sujeito.


         Na fase última de sua obra ressurge uma doce felicidade causada pelo reencontro com o objeto de desejo. Como assinalou Freud, seus personagens, geralmente adolescentes andróginos, não mais possuem o peso do fantasma do milão, ave predadora. Esta fase indica um avanço ético e um ganho subjetivo advindos de um trabalho exaustivo. Da imagem , Leonardo fez letra, traço separador, borda à um gozo destrutivo.


         Ao contrário de Leonardo, a “sublimação” de Caravaggio não foi eficaz no controle da pulsão de morte. Sua obra apresentou um caractere de oráculo onde seu calvário era sucessivamente anunciado na perspectiva da compulsão de confessar. Evidentemente essa foi, também, a condição de seu talento criador, mais próximo de uma verdade visceral que aquele de Leonardo. A verdade, vimos aí, pode matar.



Aproximações conclusivas:



         Seguindo as sugestões de Lacan sobre os resultados de uma tese de doutorado, dividimos nossas conclusões em dogmáticas e hipotéticas.


         A principal conclusão dogmática confirma nossa hipótese geral: Existe uma paridade entre o homossexualismo ideativo e a sublimação de excelência. No caso, o fantasma da mãe fálica, a imagem da Virgem valorizada por todo artista, coloca-se como uma interseção entre as duas categorias. Aproximamos, assim, um modelo de perversão de um modelo de sublimação.


         Em tal contexto o sujeito sofre de uma alienação ao eixo imaginário a-a’ e encontra obliterada a relação ao grande Outro paterno. Entretanto, Leonardo foi bem sucedido na transformação do imagético em letra. Como criador ele desenvolve uma versão singular de pai e reaparece como sujeito desejante. Ele salva-se, assim, do destino perverso da “nadificação” destrutiva.


         Uma estrutura como a de Leonardo é compatível com o discurso psicanalítico. A carência paterna em Leonardo transmutou-se em elos transferenciais com figuras masculinas.


         Entre os principais aspectos hipotéticos de nossa análise fica a convicção da necessidade de se estudar cada caso como singularidade e interrogar-se sobre as limitações da noção de estrutura em psicanálise. A mesma ajuda no diagnóstico sobre a transferência do analisante. Ao mesmo tempo ela pode interferir na escuta do psicanalista, imobilizando o seu saber no instante clínico. Nesse sentido qualquer a priori sobre as condições de “analisebilidade” seria vão.



[1] ARASSE, D., Léonard de Vinci. Le rythme du monde, Hazan, Paris, 1997. A tradução é nossa.
[2] DE VINCI, L., Les carnets de Léonard de Vinci, Gallimard, Paris, 1994. A tradução é nossa.

1 comentário:

Márcio Castro disse...

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