quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Lacan e a homossexualidade masculina

Orlando Cruxên
Professor associado I do Departamento de Psicologia da UFC. Psicanalista do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise
Super-homem, a canção
Gilberto Gil

Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me darias
Do que eu quisesse ter
Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É o que me faz viver
Quem dera pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser
Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória
Mudando como um Deus o curso da história
Por causa da mulher.


No tempo do contrato de união civil gay, faz-se necessário discutir o aporte da psicanálise às estruturas homossexuais. Até mesmo porquê, ao contrário de posições perversas clássicas, o homossexual  é um habitué do divãs.
Atemo-nos aqui, às contribuições de Lacan ao tema, principalmente, àquelas contidas no Seminário, livro V, sobre as formações do inconsciente. Vale lembrar que, ao contrário de Freud, o discurso dos psicanalistas tem sido preconceituoso ao longo de décadas. Temos que levar em conta que, em sua maioria, o psicanalista atual provém da Psiquiatria e da Psicologia, originalmente lugares de manutenção da norma e do controle social que se associam ao poder dominante. 
Se as considerações de Lacan são, por vezes, preconceituosas no Seminário, livro VIII, quando situa o homossexualismo enquanto uma perversão e compara o Banquete à uma assembléia de “tias velhas” , no Seminário, livro V, ele se mostra mais versátil e rigoroso. Não podemos esquecer, como sublinha Coutinho Jorge, que a postura preconceituosa dos psicanalistas é a única coisa em comum entre lacanianos e ipeístas (JORGE, 2010). Moebianamente, Lacan permitiu a formação aos homossexuais e considerou que eles são perfeitamente analisáveis.
Vejamos a citação de Lacan, no Seminário, livro VIII:
“ Isso não impede que o amor grego permaneça uma perversão, por maior sublimação que seja. Nenhum ponto de vista culturalista prevalece aqui. Que não nos venham dizer, a pretexto de que essa era uma perversão aceita,aprovada, até mesmo festejada, que não fosse uma perversão. A homossexualidade não deixava de ser o que é, uma perversão(LACAN, 1992, 39).”
E mais adiante, ele comenta sobre O Banquete:
“ Porque, afinal de contas, este banquete tomado em seu aspecto exterior, por alguém que nele penetre inadvertidamente, pelo camponês que sai de seu pequeno rincão nos arredores de Atenas, representa, convenhamos, uma espeécie de assembléia de tias, como se diz, uma reunião de bichas velhas (LACAN,1992,47).”
Freud, ao situar um dos modelos da homossexualidade  masculina, como resultando de uma deferência ao pai, ao simbólico portanto, teve uma melhor escuta de posições subjetivas que parecem multifacetadas, diversas.
O desenvolvimento teórico do Seminário, livro V, situa três estruturações distintas relativas, uma ao travestismo, e duas às homossexualidades masculinas.
O Édipo invertido
    O Édipo teria como função a normalização, ou seja, a assunção do sexo próprio. Como cantou Caetano em Vaca profana, “De perto ninguém é normal”, e Lacan sublinha os destinos edípicos tumultuosos no caso do menino. Retoma, então, a noção freudiana de Édipo invertido.
    Pode ocorrer no desenrolar do Édipo que o menino se encontre numa posição passiva em relação ao pai. O pai, que interditou tanta coisa, torna-se amante no plano da fantasia. A decorrência disto, fazer-se amar pelo pai, traz o risco de colocar o menino no nível da feminização, com a ameaça de castração que isto comporta. O resultado da operação é uma esquize . Por um lado, o sujeito mantém uma posição homossexual em relação ao pai. Por outro suspende, recalca esta posição, dada a ameaça de castração que ela comporta. (LACAN, 1998, 173)
    Lacan não se reporta, aqui, à fantasia “Uma criança  é espancada”. Pode ocorrer uma fixação à segunda fase da fantasia. Ser espancado pelo pai equivaleria a sofrer o coito, de forma passiva, quando o bater vem compensar a culpa pela fantasia com um ato incestuoso.
O travestismo
No estabelecimento da metáfora paterna o pai substitui a mãe. Desta substituição resta um x, onde está embutido a significação do falo. A criança, com um pouco mais ou menos de astúcia, pode se fazer falo, pela via imaginária, que implica toda uma série de fixações. Esta perspectiva é dual, o que faz todo o polimorfismo das perversões (LACAN, 1998,175).
Numa relação do fetichismo com o travestismo, Lacan coloca que a criança se identifica com o mais além do desejo da mãe, com o falo propriamente dito. O falo com valor de excelência é tomado pela via de uma identificação imaginária à mãe. Há mais que uma identificação à mãe fálica. Há uma identificação ao falo escondido sob às vestimentas da mãe(LACAN,1998,184) A criança não aceita que a mãe seja privada pelo pai do objeto de seu desejo. Estamos aqui, aquém da dialética do ter. Estamos no nível do to be or not to be o falo. A possibilidade de ser castrado é essencial na assunção do fato de poder ter o falo (LACAN, 1998, 186).
A criança permanece envelopada pela mãe, espécie de segunda pele, como Gauthier denominou algumas camisetas coladas na década de 90…Daí toda a importância das vestimentas em alguns casos de perversão. O sujeito fica preso à lei da mãe, que é uma lei descontrolada, uma lei do capricho. A lei está toda no sujeito que a suporta, ou seja, o bem ou o mal querer da mãe (LACAN, 1998,188). De uma certa forma, o sujeito responde à finalização do Édipo materno, quando o desejo de recuperar o falo é o ápice, resistindo à interdição paterna.
O que provoca questionamentos é o fato de muitos travestis declararem que preferem a posição ativa no ato sexual. Podemos pensar, com Freud, a gênese do fetiche. Uma parte do representante ideativo sofre o recalque. A outra parte se articula à idealização. Assim, dada a marca do recalque, o sujeito, em parte, acederia à dialética do ter ou não ter o falo.

O Édipo na homossexualidade masculina
    “ Les homosexuels, on en parle. Les homosexuels, on les soigne. Les homosexuels, on ne les guérit pas. Et ce qu’il y a de plus formidable c’est qu’on ne les guérit pas malgre qu’ils soient absolument guérissables” (LACAN, 1998, 207)
    No Seminário, livro V, Lacan começa a falar de homossexualidade masculina de forma enigmática e aforística. Fala que os analistas cuidam dos homossexuais, mas não os curam, apesar deles serem totalmente curáveis. Lacan deixa entrever, aqui, um desejo de que os homossexuais pudessem mudar suas orientações sexuais. Ao mesmo tempo indica que há vários homossexuais em tratamento. O que não ocorre, com muita freqüência, em casos de perversão.
    Lacan comenta que o homossexual passa pelo Édipo, de forma completa. O que precisamos compreender é o ponto preciso do término do Édipo. A relação com o objeto feminino, longe de ser abolida, é profundamente estruturada.
    Entre os traços da homossexualidade masculina, um dos mais fortes é sua relação profunda e primordial com a mãe (Lacan, 1998,207). No casal parental, a mãe tem uma função diretriz, eminente, ocupando-se mais do filho que do companheiro.
    O interesse pelo pênis do parceiro, característica completamente exigível, provém do fato de que a mãe fez lei ao pai. A procura pelo orgão do parceiro surgiria como uma exigência de certificação de que a lei está no lado paterno.
    Lacan desenvolvera, anteriormente, a tese de que o pai intervém na dialética edipiana com o desejo de fazer lei à mãe. Na homossexualidade masculina a mãe faz a lei ao pai, num momento decisivo. Quando a intervenção interditora do pai deveria introduzir o sujeito à fase de dissolução de sua relação ao objeto do desejo da mãe e cortar, pela raiz, toda possibilidade do sujeito se identificar ao falo, a criança encontra reforço na estrutura da mãe para 1que esta crise não tenha lugar. O sujeito experimenta o fato de que a mãe detém a chave da situação que ela não se deixa privar do falo. Houve a interdição, mas ela escoou. Em outros casos, onde a marca da interdição paterna é quebrada, o resultado é o mesmo. Pode ser que o pai ame demais a mãe e que surja como muito dependente dela (LACAN,1998,208).
    Lacan se preocupa com uma diversidade de casos. Em vários deles, o pai está presente no sentido do Édipo não invertido. Por trás da relação tensional à mãe, marcada todo tipo de acusações, de queixas, de manifestações agressivas, que compõe o texto de uma análise de um homossexual, existe a presença do pai como rival, da maneira mais clara (LACAN, 1998,209).
    Nesta vertente do Édipo, o sujeito se identifica com o lado forte, com a mãe.
    Quando encontra um parceiro que é substituto do personagem paterno, suas fantasias e sonhos demonstram que o sujeito trata de desarma-lo, de torná-lo incapaz de se fazer valer ante uma mulher. Por outro lado, o interesse pelo pênis no parceiro, provém do fato de que algo é colocado em questão- ele o têm, ou não? O parceiro deve demonstrar que têm(LACAN, 1998, 210).
    Se amar é dar o que não se tem, o amor excessivo do pai pela mãe torna-se um indicativo de que o pai pode não ter o falo. Em relação ao orgão feminino, o sujeito apresenta um temor de que ele detenha o falo paterno. Não se trata aqui do horror à castração, desmentido e assunção de um triunfo no lugar da castração, conforme os delineamentos freudianos de O fetichismo.
Se a castração não é desmentida, é porquê ela é inscrita e a lei que permite o acesso ao desejo, mesmo que de forma bastante conflitante, situa-se na vertente paterna. Buscar o falo no parceiro favorece a um basta à lei do capricho materno. O sujeito tem acesso à dialética do ter ou não ter.
Entretanto, Lacan permanece obscuro ao não diferenciar este Édipo completo, da efusão que o perverso mantém com o falo materno. Perversão esta que se inscreve na dialética do to be or not to be o falo.
Freud, em Sobre algunos mecanismos neuróticos en los celos, la paranóia y La homosexualidad (1922 [1921]) apresenta três versões claras, embora sucintas, sobre homossexualidade masculina.
O processo típico, discutido no capítulo 3 de seu estudo sobre Leonardo, implica uma forte fixação infantil à mãe e uma mudança de atitude na puberdade: identificação com a mãe e procura de objetos amorosos onde o sujeito redescobre-se e ama, tal como outrora fora amado pela mãe. Atribui-se um alto valor ao órgão masculino e sua ausência no objeto amado é intolerável.
“ Más tarde hemos llegado a conocer todavia, como poderoso motivo para la elección homosexual de objeto, la deferencia por el padre o la angustia frente a el, pues la renuncia a la mujer tiene el significado de “hacerse a un lado” en la competência con el (o con todas las personas de sexo masculino que hacem sus veces ( FREUD,2007 (1922), 224)  .”
Freud, em seguida, descobriu que uma forte deferência ao pai, na altura do complexo de castração, motiva a homossexualidade.
Em um modelo que pode ser articulado ao precedente, Freud postula na origem da homossexualidade um ciúme arcaico, dirigido contra os irmãos mais velhos. Ciúme este, derivado do complexo materno. Esses impulsos sofrem o recalque e experimentam uma transformação, de forma que os antigos rivais surgem como os primeiros objetos amorosos homossexuais.
Este processo, em contraste completo com o desenvolvimento da paranóia, demonstra uma exageração do movimento que conduz ao nascimento de pulsões sociais no indivíduo.
O quadro é caracterizado por uma mudança muito precoce das pulsões agressivas tanto quando pelo fato da identificação com a mãe retroceder para segundo plano. Há, aqui, um amor pela diferença que convive com a heterossexualidade e não contém traços do horror feminae.
Outras considerações de Lacan sobre a homossexualidade masculina
    Apenas a título de informação, assinalamos  que Lacan também tratou de homossexualidade masculina em A juventude de Gide, texto dos Escritos. Ali ,ele pondera sobre a disjunção entre a corrente do amor e a do desejo. Gide, realmente, amava sua prima e futura esposa Madeleine. Sua atração sexual e seu desejo, entretanto, era dirigido à jovens. Suas cartas à Madeleine se constituiram como fetiche . Uma vez rasgadas por Madeleine, provocaram em Gide um estremecimento no fundo do ser e verdadeiros gritos de fêmea.
No Seminário, livro XX, Mais ainda, Lacan simplifica as posições sexuais em termos de sexuação. É facultado ao falasser colocar-se no lado homem, ou no lado mulher, das fórmulas de sexuação. São João da Cruz é citado como alguém que se situou com afinidade no lado mulher das fórmulas . Afinal, heterossexualidade advém da diferença oposicional dos significantes e deve ser mesmo todo tipo de amor pela diferença.
A posição de Freud foi mais atenta e aberta. Aliás, o repúdio ao feminino, encarnado na aversão atual ao homossexualismo, parece uma nova forma de repressão sexual. Como assinala JORGE (2011,62) referindo-se ao último tópico, do terceiro ensaio de Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade:
“Nele podemos observar a maneira sub-reptícia pela qual Freud praticamente traz a homossexualidade para o campo da normalidade. Ao observar que a atração que os caracteres sexuais antagônicos exercem um sobre o outro não é suficiente para excluir a perversão, ele pondera que a interdição desta pela sociedade é um fator proeminente para realizar tal exclusão. E acrescenta que, “ quando a inversão não é considerada um crime, ver-se-á que ela responde amplamente às inclinações sexuais de um número não pequeno de pessoas” (:209).”

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