terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A noção de mãe na psicanálise

Orlando Soeiro Cruxên*









Falar sobre mãe, do ponto de vista psicanalítico, em artigo de jornal, é tarefa ingrata. É como “falar da mãe de alguém”, já que desmistifica a opinião romântica enraizada sobre o assunto.

Em “Uma canção desnaturada”, Chico Buarque diz bem, fato peculiar aos poetas, o que está em jogo na problemática relação da mãe com o sujeito. A canção surge na peça “Ópera do Malandro” enquanto a mãe acalenta a filha adolescente (Teresinha), após descobrir seu envolvimento com um rapaz (Max Overseas). O ninar surge, portanto, num momento de perda, de separação. Constitui-se como arrependimento pelo tempo perdido, por cuidados maternos exaustivos. A mãe, entretanto, não se refere ao fato de que cuidando da filha, cuidava de si mesma, posto que todo amor é narcísico. Falar de mãe, em psicanálise, é referir-se à dialética da presença e da ausência da mãe na estruturação do sujeito.

No que concerne à sua presença, a mãe tem papel fundamental para a identificação imaginária. Ao mesmo tempo, fornece as condições para que uma relação funcional com o filho seja superada. Vejamos, agora, como essas questões têm sido tratadas na perspectiva freudo-lacaniana.





Função e pulsão de autoconservação:



Antes de mais nada, é preciso elucidarmos um ponto: mãe e pai, para a psicanálise, são, acima de tudo, funções. Tanto a função materna como a paterna podem ser ocupadas por vários representantes (familiares, instituições, etc.) na história de cada um. Dessa forma, uma criança criada em pequena comunidade, um kibutz israelense, por exemplo, tem acesso a essas funções tais como aquelas criadas no modelo triangular ocidental de família. A lógica estruturante ou organizada sempre vai operar.

A função materna pode ser apreendida nos textos freudianos com as noções de autoconservação, de sedução infantil, entre outras. As pulsões, entre elas, a de autoconservação, divergem dos instintos, característicos dos animais.

No ser humano, as necessidades são vistas a partir de um duplo aspecto articulado: universo de linguagem e de desejo. A maternagem dirige-se às necessidades da criança traduzindo-as como desejos. Nesse processo, sexualiza-se bordas contingentes à autoconservação: boca, ânus, órgãos genitais, etc. O fato é que, à medida em que somos tratados com preocupações nutrizes e higiênicas, um algo mais perpassa esses cuidados: o universo simbólico de quem ocupa a função materna. No trato com o filho, a mãe instaura, inscreve os significantes de seu desejo.

O amor, em parte resultante dessa relação de cuidados, faz laços com a autoconservação, já que essa qualidade barra a pulsão de morte. Como escreveu Lacan: “O amor faz rom rom, dirige-se do estômago, à autoconservação.”





Sedução infantil:



Vimos como os cuidados maternos funcionam para a criança como sedução sexualizadora necessária. Ao cuidar do infante, a mãe o erotiza à luz da história do seu próprio desejo, registrada no inconsciente.

O advento da sedução infantil é facilitado pelo fato da mãe superinvestir no filho. A criança, via de regra, é tida como reencontro de algo perdido. Basta atentarmos para o orgulho com que algumas mulheres grávidas portam seus bebês, seus “agalmas”, para termos uma referência no observável desse registro psicológico.

A função materna, dessa maneira, possibilita a inscrição primeira da perspectiva desejante do sujeito. Só assim, por uma não-adequação entre necessidade e demanda, torna-se viável a ocupação de um lugar desejante. O caso da anorexia infantil revela que um pedido interpretado como necessidade não tem aceita sua satisfação. A mãe do anoréxico tende a ver unicamente necessidade na demanda da criança. O alimento é rejeitado em prol da manutenção do desejo.





A mãe é da ordem do sensível:



Em “Moisés e o Monoteísmo”, Freud teoriza sobre os aspectos diferenciais entre pai e mãe. Nesse trabalho, a mãe é apresentada como da ordem do sensível. O continente por ela representado é corpóreo, implicando numa certeza de filiação para o sujeito e em solo para seu narcisismo.

Em relação ao pai, a mesma certeza não ocorre. O pai é, antes de mais nada, inferência. Podemos inferir a paternidade. Uma certeza absoluta sobre ela é muito difícil. O pai, sempre marcado por incerteza sensível, é simbólico.

Funções materna e paterna constituem-se como matrizes da estruturação psíquica do sujeito, vinculadas a um outro termo fundamental: universo simbólico. O estágio do espelho constitui o primeiro tempo do Édipo, onde a função materna é básica para o futuro desejante.

Conceituado por Jacques Lacan, o estágio do espelho é uma operação de onde resulta a matriz constitutiva do “eu”. Tal estágio implica no advento do sujeito como outro. A representação de si passa, necessariamente, pela imagem do outro, tal como reflexo de espelho. Uma certeza subjetiva advém daí, mas de forma virtual, imagética ou ilusória. O estabelecimento desse estágio é fundamental porque, sem o mesmo, toda capacidade de representação e reconhecimento ficaria comprometida.

Essa relação com o espelho equivale à relação primeira com a mãe. A criança não deseja apenas ser cuidada. Deseja ser para a mãe o que complementaria sua imagem no espelho. Daí tende a tomar o lugar de uma falta suposta à mãe, o que, em psicanálise, designamos “falo”.

Se tal estágio permite o advento de uma representação de si, de uma subjetividade, por outro lado, marca a subjugação à imagem própria, ao semelhante, ao desejo materno. Presa de tal desejo, a criança não poderia advir com o sujeito. Nessa perspectiva, Lacan se refere à mãe no Seminário XVII.

“O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital o desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo, em cuja boca vocês estão – a mãe é isso (...)”

No desdobramento da dialética edípica, a função paterna possibilita o emergir do sujeito desejante, diferenciado da imagem que o cativara. Não sendo nosso objetivo, aqui, estendermo-nos no que concerne à tal função, vale, entretanto, apontar seu relevo na estrutura psíquica.

A função paterna funciona de forma metafórica. O que caracteriza toda metáfora é a substituição de um termo por outro. Assim, a metáfora paterna permite ao sujeito eclipsar o desejo da mãe que, ao permanecer recalcado, funda as representações inconscientes. É a própria mãe, entretanto, que, reconhecendo essa função no pai, permite a substituição.

A mãe, continente especular, sede das alienações, certeza sensível, é vivenciada como gozo supremo (gozo do outro), em direção ao qual o sujeito deve ser barrado sob o risco de retornar ao real da mãe natureza. Logo ele, sujeito da cultura... Pode, entretanto, usufruir de um pouco de gozo, o gozo do fal(t)ante.

“Partir c`est mourrir un peu” (partir é morrer um pouco). Esse quinhão é dado como dívida simbólica do pai, no evitamento da morte: senhora absoluta, tão certa quanto a maternidade. Teresinha, a filha acalentada pela mãe na “Canção Desnaturada”, que o diga. Ela queria mesmo desnaturar-se, sair de uma certeza para inferir seu destino de mulher.

E o que temos em defesa das mães? Elas padecem de perdas de objetos que faziam suportável seu universo feminino: as meninas, os meninos e os maridos crianções. Daí serem compreensíveis as revoltas maternas de Medéia, da mãe de Teresinha. Se elas pudessem, certamente, reverteriam o tempo, recuperariam as noites em claro e, quem sabe, recolheriam ao ventre aqueles que dali, respaldados por seu desejo, saíram um dia.







* Psicanalista (membro da C.L.E.F. – Clínica e Estudos Freudo-Lacanianos)
   Professor do Departamento de Psicologia da UFC
   Mestre em Sociologia – UFC.

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