Orlando Soeiro Cruxên*
Falar sobre mãe, do ponto de vista psicanalítico, em artigo de jornal, é tarefa ingrata. É como “falar da mãe de alguém”, já que desmistifica a opinião romântica enraizada sobre o assunto.
Em “Uma canção desnaturada”, Chico Buarque diz bem, fato peculiar aos poetas, o que está em jogo na problemática relação da mãe com o sujeito. A canção surge na peça “Ópera do Malandro” enquanto a mãe acalenta a filha adolescente (Teresinha), após descobrir seu envolvimento com um rapaz (Max Overseas). O ninar surge, portanto, num momento de perda, de separação. Constitui-se como arrependimento pelo tempo perdido, por cuidados maternos exaustivos. A mãe, entretanto, não se refere ao fato de que cuidando da filha, cuidava de si mesma, posto que todo amor é narcísico. Falar de mãe, em psicanálise, é referir-se à dialética da presença e da ausência da mãe na estruturação do sujeito.
No que concerne à sua presença, a mãe tem papel fundamental para a identificação imaginária. Ao mesmo tempo, fornece as condições para que uma relação funcional com o filho seja superada. Vejamos, agora, como essas questões têm sido tratadas na perspectiva freudo-lacaniana.
Função e pulsão de autoconservação:
Antes de mais nada, é preciso elucidarmos um ponto: mãe e pai, para a psicanálise, são, acima de tudo, funções. Tanto a função materna como a paterna podem ser ocupadas por vários representantes (familiares, instituições, etc.) na história de cada um. Dessa forma, uma criança criada em pequena comunidade, um kibutz israelense, por exemplo, tem acesso a essas funções tais como aquelas criadas no modelo triangular ocidental de família. A lógica estruturante ou organizada sempre vai operar.
A função materna pode ser apreendida nos textos freudianos com as noções de autoconservação, de sedução infantil, entre outras. As pulsões, entre elas, a de autoconservação, divergem dos instintos, característicos dos animais.
No ser humano, as necessidades são vistas a partir de um duplo aspecto articulado: universo de linguagem e de desejo. A maternagem dirige-se às necessidades da criança traduzindo-as como desejos. Nesse processo, sexualiza-se bordas contingentes à autoconservação: boca, ânus, órgãos genitais, etc. O fato é que, à medida em que somos tratados com preocupações nutrizes e higiênicas, um algo mais perpassa esses cuidados: o universo simbólico de quem ocupa a função materna. No trato com o filho, a mãe instaura, inscreve os significantes de seu desejo.
O amor, em parte resultante dessa relação de cuidados, faz laços com a autoconservação, já que essa qualidade barra a pulsão de morte. Como escreveu Lacan: “O amor faz rom rom, dirige-se do estômago, à autoconservação.”
Sedução infantil:
Vimos como os cuidados maternos funcionam para a criança como sedução sexualizadora necessária. Ao cuidar do infante, a mãe o erotiza à luz da história do seu próprio desejo, registrada no inconsciente.
O advento da sedução infantil é facilitado pelo fato da mãe superinvestir no filho. A criança, via de regra, é tida como reencontro de algo perdido. Basta atentarmos para o orgulho com que algumas mulheres grávidas portam seus bebês, seus “agalmas”, para termos uma referência no observável desse registro psicológico.
A função materna, dessa maneira, possibilita a inscrição primeira da perspectiva desejante do sujeito. Só assim, por uma não-adequação entre necessidade e demanda, torna-se viável a ocupação de um lugar desejante. O caso da anorexia infantil revela que um pedido interpretado como necessidade não tem aceita sua satisfação. A mãe do anoréxico tende a ver unicamente necessidade na demanda da criança. O alimento é rejeitado em prol da manutenção do desejo.
A mãe é da ordem do sensível:
Em “Moisés e o Monoteísmo”, Freud teoriza sobre os aspectos diferenciais entre pai e mãe. Nesse trabalho, a mãe é apresentada como da ordem do sensível. O continente por ela representado é corpóreo, implicando numa certeza de filiação para o sujeito e em solo para seu narcisismo.
Em relação ao pai, a mesma certeza não ocorre. O pai é, antes de mais nada, inferência. Podemos inferir a paternidade. Uma certeza absoluta sobre ela é muito difícil. O pai, sempre marcado por incerteza sensível, é simbólico.
Funções materna e paterna constituem-se como matrizes da estruturação psíquica do sujeito, vinculadas a um outro termo fundamental: universo simbólico. O estágio do espelho constitui o primeiro tempo do Édipo, onde a função materna é básica para o futuro desejante.
Conceituado por Jacques Lacan, o estágio do espelho é uma operação de onde resulta a matriz constitutiva do “eu”. Tal estágio implica no advento do sujeito como outro. A representação de si passa, necessariamente, pela imagem do outro, tal como reflexo de espelho. Uma certeza subjetiva advém daí, mas de forma virtual, imagética ou ilusória. O estabelecimento desse estágio é fundamental porque, sem o mesmo, toda capacidade de representação e reconhecimento ficaria comprometida.
Essa relação com o espelho equivale à relação primeira com a mãe. A criança não deseja apenas ser cuidada. Deseja ser para a mãe o que complementaria sua imagem no espelho. Daí tende a tomar o lugar de uma falta suposta à mãe, o que, em psicanálise, designamos “falo”.
Se tal estágio permite o advento de uma representação de si, de uma subjetividade, por outro lado, marca a subjugação à imagem própria, ao semelhante, ao desejo materno. Presa de tal desejo, a criança não poderia advir com o sujeito. Nessa perspectiva, Lacan se refere à mãe no Seminário XVII.
“O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital o desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo, em cuja boca vocês estão – a mãe é isso (...)”
No desdobramento da dialética edípica, a função paterna possibilita o emergir do sujeito desejante, diferenciado da imagem que o cativara. Não sendo nosso objetivo, aqui, estendermo-nos no que concerne à tal função, vale, entretanto, apontar seu relevo na estrutura psíquica.
A função paterna funciona de forma metafórica. O que caracteriza toda metáfora é a substituição de um termo por outro. Assim, a metáfora paterna permite ao sujeito eclipsar o desejo da mãe que, ao permanecer recalcado, funda as representações inconscientes. É a própria mãe, entretanto, que, reconhecendo essa função no pai, permite a substituição.
A mãe, continente especular, sede das alienações, certeza sensível, é vivenciada como gozo supremo (gozo do outro), em direção ao qual o sujeito deve ser barrado sob o risco de retornar ao real da mãe natureza. Logo ele, sujeito da cultura... Pode, entretanto, usufruir de um pouco de gozo, o gozo do fal(t)ante.
“Partir c`est mourrir un peu” (partir é morrer um pouco). Esse quinhão é dado como dívida simbólica do pai, no evitamento da morte: senhora absoluta, tão certa quanto a maternidade. Teresinha, a filha acalentada pela mãe na “Canção Desnaturada”, que o diga. Ela queria mesmo desnaturar-se, sair de uma certeza para inferir seu destino de mulher.
E o que temos em defesa das mães? Elas padecem de perdas de objetos que faziam suportável seu universo feminino: as meninas, os meninos e os maridos crianções. Daí serem compreensíveis as revoltas maternas de Medéia, da mãe de Teresinha. Se elas pudessem, certamente, reverteriam o tempo, recuperariam as noites em claro e, quem sabe, recolheriam ao ventre aqueles que dali, respaldados por seu desejo, saíram um dia.
Professor do Departamento de Psicologia da UFC
Mestre em Sociologia – UFC.
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