terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Algumas questões relativas à formação do psicanalista



 




                                                                       Orlando Soeiro Cruxên. Professor associado do departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Doutor em Psicologia pela Université Paris XIII. Psicanalista. Membro do Corpo Freudiano-Escola de Psicanálise( seção Fortaleza). Pós-doutor em Psicologia pela PUCRS. Autor de Léonard de Vinci avec le Caravage – Un hommage à la sublimation et à la création, publicado pela editora l´Harmattan em Paris e de A sublimação, publicado por Jorge Zahar Ed., além de vários artigos científicos.

Endereço: Rua Barbosa de Freitas, 1824/502. Fone: 085 - 32247771




























Algumas questões relativas à formação do analista

Some questions concerning psychoanalytical formation

Quelques questions sur la formation du psychanaliste

                                                           Resumo



A formação psicanalítica permanece como uma temática inacabada. Um avanço em seu estudo implica discorrer sobre a evolução da teoria da clínica. O presente trabalho parte de uma distinção implícita entre formação analítica e formação universitária, sem explorar esta última. Traz o aporte de Jacques Lacan para a questão da formação. Mostra o problema da passagem da psicanálise em intensão para a psicanálise em extensão. Esse artigo sintetiza alguns recortes teóricos de uma pesquisa de pós-doutorado realizada na clínica-escola de Psicologia da UFC e no SAP da PUCRS.

Psicanálise, formação, clínica, passe



                                                           Abstract



The psychoanalytical formation is a question without a definitive answer. The development of its study requests treatment of the evolution of the clinical theory. This work begins with a distinction between analytical and academic formation. It includes  Jacques Lacan’s approach concerning the question of psychoanalytical formation. It discusses the relationship between the named intentional and extensional psychoanalysis. This article resumes some theoretical aspects of a post-doctoral investigation developed in the clinical-school of Psychology (Universidade Federal do Ceará) e SAP ( Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).

Psychoanalysis, formation, clinical, pass



                                               Resumé



La formation psychanalitique demeure une question ouverte. Une avancée sur ce sujet implique parcourrir l’évolution de la theorie de la clinique. Notre étude part d’une distinction entre formation psychanalytique et formation universitaire. Il amène les contribuitions de Jacques Lacan sur cette question. Il démontre le problème du passage de l’analise en intension vers l’analise en extension. Cet article sintetize quelques découpages théoriques obtenues pendant une recherche de pós-doctorat realisé en deux cliniques écoles.

Mots clés: Psychanalise, formation, clinique, passe.





1. Introdução:

                   O desenvolvimento deste artigo parte de uma preocupação acerca da formação psicanalítica. Surge no momento preciso em que nos sentimos interpelados, seja na condição de supervisor de uma clínica-escola de Psicologia, seja como membro responsável pela formação numa escola de psicanálise, por questões articuladas à difícil posição de escuta.

                    Aqui, chamamos a atenção para a necessidade de uma formação analítica que apenas poderia ocorrer fora da universidade. Assim, a entrada do estagiário numa escola de psicanálise, tanto quanto seu percurso na análise pessoal, seria imprescindível ao exercício de uma verdadeira clínica. Caso contrário, teríamos a configuração de uma demanda às avessas, onde um estagiário precisa de pacientes para sedimentar um saber egóico e cumprir o restante dos créditos obrigatórios.

                   A formação psicanalítica, ao contrário da universitária, direciona o analista para o único lugar a partir do qual fará operar a verdade do paciente, o de não-saber. Seu lugar de nada, de objeto a, possibilita a constituição de um lugar vazio onde o discurso do analisante vai se produzir.

                   Portanto, dentro do objetivo pontual deste texto, procurar elucidar os parâmetros que possibilitem a ocupação do lugar de analista é a única maneira de permitir a reatualização recorrente do frescor da verdade, contribuição maior do discurso analítico para o Ocidente.

                   Nesse recorte específico de nossa investigação maior, optamos por trabalhar, dentro da análise teórica, o tema da formação psicanalítica, à luz de textos fundadores da perspectiva freudo-lacaniana tais como “Situação da psicanálise e do analista em 1956” e “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, ambos de Jacques Lacan.

                   Discorremos, também, sobre questões chaves que incidem sobre o problema da formação: a articulação entre o valor e o ideal na transferência, o liame entre a psicanálise e sua política institucional. Terminamos com um convite à reflexão sobre o problema da sobrevida da psicanálise.

                   Acreditamos que a contribuição original de nosso trabalho seja a de fornecer subsídios para a resistência à banalização e ao desvirtuamento da psicanálise na universidade. Essa discussão, que tem sido tímida, é extremamente necessária uma vez que o atendimento em clínica-escola acolhe a demanda de centenas de sujeitos que podem vir a ser tratados como objetos. São esses sujeitos que sustentam a dimensão ética de nossa inquietação.



2. Sobre a formação psicanalítica.



                   Lacan aborda a formação psicanalítica sob um contundente viés crítico. Ele radiografa a situação da psicanálise em 1956, atendo-se à estrutura da formação e sua hierarquia, lógica de organização grupal, relação com a palavra e a verdade.

                   Uma frase sustenta-se como baliza de seu raciocínio(LACAN, 1998, p.465): “Pois, se podemos definir a psicanálise como tratamento que se espera de um psicanalista, é justamente a primeira, no entanto, que decide sobre a qualidade do segundo.” Trata-se, portanto, de vistoriar o estado da psicanálise de então para se ter uma idéia do perfil do psicanalista.

                   Em seu desenvolvimento, o autor demonstra como os alicerces da formação se sustentaram em falsas premissas e desvios da descoberta freudiana.

                   O ponto fundamental do engodo implicado na formação situa-se na negligência dos conceitos de significante e de ordem simbólica. Daí advém o equívoco da noção de transferência, identificada a uma constelação de sentimentos experimentados pelo analisante num dispositivo dual. Ora, a estruturação da sessão é ternária pois inclui o Outro, a palavra surgida na alteridade como fundamental ao avanço dialético de um saber.

                   A história da psicanálise, situada na escuta de uma fala, demonstrou que a interpretação é, em parte maior, tarefa do analisante. Tal fato incomodou o psicanalista a ponto de fazê-lo criar um inefável, um além do discurso como saber intransferível. Fundou-se, assim, uma espécie de “Terceiro ouvido”, expressão cunhada por Theodor Reik, como forma de se aludir ao inarticulado, uma grade de saber que ultrapassaria o analisante mas o condicionaria.

                   Instalou-se, dessa forma, uma perspectiva dual, imaginária no dispositivo analítico: uma espécie de psicologização sedimentada numa metalinguagem. Aliado a isso houve o modismo de se fazer uma leitura anafreudiana da segunda tópica, quando o Eu foi valorizado como instância de síntese. A teoria americana do “eu forte” encontra-se nesta vertente.

                   Influências kleinianas também vão permear a prática analítica desembocando no indizível das relações pré-edípicas e pré-discursivas. Com elas, o princípio da identificação com o analista, da “introjeção do bom objeto” surge como um objetivo da análise.

                   Com os pós-freudianos, a psicanálise abandona suas bases conceituais, adota uma atitude ante-intelectualista e faz da identificação dual a finalidade da cura. Como diz Ruth Lebovici sobre o caso Yves (LACAN,1998, P.467): “Após tantos anos de análise, meu paciente ainda não conseguia me sentir; um dia, enfim, minha insistência não menos paciente levou a melhor: Ele percebeu meu cheiro. Ali estava a cura.”

                   O esforço de Lacan dá-se no sentido de um retorno a Freud. Seria preciso retomar a articulação da pulsão com o witz. Os analistas precisariam deter os rudimentos da problemática da linguagem e afastarem-se da tendência behaviorista que imperava na época (LACAN, 1998, p.469): “(…) não há forma de estilo, por mais elaborada que seja, em que o inconsciente não abunde, sem excetuar as eruditas, as concettistas  e as preciosas, que ele despreza tão pouco quanto o faz o autor dessas linhas(…)”

                   O autor alude a Ferdinand de Saussure sem esquecer de sublinhar a primazia do significante sobre o significado. É o significante que provoca reagrupamentos nas significações que coordenam o sujeito e que, muitas vezes, surgem na vestimenta do sintoma. Nesse sentido, a verdade deve ser tomada ao pé da letra, quando a sobredeterminação configura-se como fato de sintaxe.

                   Apenas o aporte da ordem simbólica pode nortear o percurso do analista. Ordem essa que antecede ao homem atrelando-o numa cadeia. As malhas da linguagem o permeiam e tramam um destino que recebe uma dose de liberdade com a intervenção psicanalítica. A ordem simbólica possui com o homem a mesma “extimidade” do inconsciente.

                   A compreensão deve ser deixada aos fenomenólogos e não pode desalojar a escuta. Espichada, ela se detém nos “sons ou fonemas, (…) palavras, locuções e frases, sem omitir as pausas, escansões, cortes, períodos e paralelismos, pois é aí que se prepara a literalidade da versão sem a qual a intuição analítica fica sem apoio e objeto.” (LACAN, 1998, p. 469)

                   Dessa forma, a psicanálise se afirma como ciência conjectural. Há um cálculo possível da alteridade constituinte materializada no significante.

                   Uma vez explorado o conteúdo da formação, condensado em torno da filologia, Lacan radiografa o modus operandi da IPA, visando demonstrar suas vias de obstrução e impasse.

                   A lógica da IPA segue as modulações da formação dos grupos a partir de um líder, explicitadas por Freud em Psicologia das massas e análise do eu. Na coesão grupal há identificação do Eu de cada indivíduo com a mesma imagem ideal obtida a partir do líder. Freud escreveu esse artigo dez anos depois de fundar a IPA. Lacan deixa entrever o que nesse escrito seria uma decepção do pai da psicanálise com a sociedade por ele formada.

                   A via de “transmissão” da IPA ocorre por reprodução imaginária, onde o candidato é uma espécie de cópia a pluralizar um único. Esse uno recebe, na pena de Lacan, o nome de suficiência. Como um mestre, sua verdade é a de que ele é  o senhor e que confere aos servos os selos que poderiam fazê-los aceder ao posto.

                   De fato, é que existe uma trucagem na transmissão em jogo. A suficiência não reconhece as falhas inerentes a um processo dialético no avanço do saber. O candidato “sapato apertado” conforma-se com o mutismo característico do eixo imaginário (a-a’) que prescinde do Outro. A teoria que faz do objetivo da psicanálise a identificação com o Eu do psicanalista se reproduz no seio da instituição.

                   Os programas de formação acabam tomando como referência o modelo médico ao qual acedem pela via do repeteco. Como a política do silêncio é necessária à escalada no gradus, acaba proliferando na instituição um “analfabetismo em estado congênito.” (LACAN, 1998, p.485) Feito o diagnóstico da situação, enquanto saída, Lacan vai propor o passe como dispositivo de nomeação do Analista da Escola, em 1967.

                   O termo passe é cunhado sem a herança freudiana. Implica uma transposição, a passagem de uma borda à outra, segundo a metáfora marítima. Trata-se de um conceito necessário à teorização do final de análise. De fato, existe um término da análise ao qual Lacan dedicou trechos de vários seminários. Esse fim se concretiza, antes de mais nada, com a travessia da fantasia.

                   A fantasia é uma janela para o real, aquilo que permite ao sujeito sustentar-se ante o real. Sua travessia suscita o deslindar de várias conjugações do sujeito na gramática que o prende ao objeto ($<>a). Nesse trajeto há a perda da segurança do estatuto imaginário do objeto (i(a)), que visa mascarar seu aspecto de estranheza real. Essa situação de perda do objeto é, também, aquela de dessuposição de saber no analista, tomado no início da análise como Ideal do eu.

                   O analisante passa, portanto, por uma dessubjetivação. No final da análise, encara o analista como dejeto sem o envoltório de saber que antes lhe conferia. O luto é situado no lado do Outro. O analista deve suportar perder seu analisante. Vê-se, assim, como causa do desejo. Causa que cai tanto quanto o sujeito (que possui uma equivalência com o objeto).

                   Como o sujeito poderia vir a querer ocupar o lugar daquilo que cai ao final de uma análise? Temos aqui a principal questão que faz com que Lacan estabeleça em sua Escola o dispositivo do passe.

                   Tal questão está inserida numa visão de Escola psicanalítica que facilitaria o processo de manifestação inconsciente e, ainda por cima, tomaria a responsabilidade da transmissão do referido processo.

                   O candidato ao passe deveria testemunhar os encontros faltosos que permearam sua análise a fim de que a experiência analítica não caia no inefável mutismo ou amnésia. Assim, dos percalços de sua própria análise, o candidato faria uma transição entre a intensão (análise pessoal) e a extensão (produção no seio da Escola). Apenas a análise em extensão, onde o testemunho converte-se em teoria, poderia sustentar os efeitos a posteriori do ato analítico. De uma certa forma, o tempo de compreender sucede o momento de concluir, sincopado como ação de um saber não-sabido.

                   É o final de análise que permite ao analista autorizar-se de si mesmo. A partir do momento em que essa dessubjetivação ocorre, o sujeito está apto a ocupar o lugar de “des-ser” do psicanalista. Portanto, estamos diante de uma complexa teia teórica que cobre o final de análise e serve como viga mestra da estruturação de instituições que se pretendem freudianas. Era preciso pensar um tipo de grupo que não se organizasse como as massas em torno de um líder, mas que, por outro lado, permitisse à pura diferença obtida na análise irradiar-se em pólos de saber (cartéis, produções escritas, etc). Por isso, Lacan propõe para a Escola a vigência de um gradus ao invés de uma hierarquia apta para a cooptação imaginária:

                   “ É isso que constitui a garantia proveniente da Escola, destacada desde o começo. Sua iniciativa compete à Escola, onde só se é admitido com base no projeto de um trabalho e sem consideração com a proveniência nem as qualificações. Um analista praticante só é registrado nela, no começo, nas mesmas condições em que nela se inscrevem o médico, o etnólogo e o tutti quanti.” (LACAN, 2003, p. 249)



6.4. “Des-ser” e Ideal do Eu na formação:

                   O desejo do analista é algo que se esboça no tempo de uma formação. Ganha contorno e enigma no término de uma análise pessoal. Carece de assentamento, sendo aquilo que permite, segundo Lacan, ocupar o lugar de “des-ser”. Atualiza-se no ato analítico, um ato de razão outra, nem sempre imediatamente justificável. Uma indagação sobre como ao desejo do sujeito pode sobrepor-se o desejo de ocupar um lugar de não-saber, sustenta a teoria do passe.

                   Nossa intenção com essa discussão está circunscrita no pensar sobre certas nodulações ou paradas imaginárias que permeiam a travessia da formação onde se aloja o desejo do analista. Tais sedimentações envolvem um não-dito sobre o dinheiro em Psicanálise e a forma como ele atravessa o Ideal da formação, personificado em figuras que aliam saber e poder. Falaremos, portanto, destes quesitos intrínsecos à formação e que se articulam à própria questão do desejo do analista.



  • O valor das sessões:



                   A função do dinheiro em psicanálise surge, primeiramente, no âmbito do tratamento. Temos aqui um investimento que precisa levar em conta a duração, geralmente longa, do trabalho. O analista sofreria um grande prejuízo caso aceitasse vários analisantes pagando baixos honorários.

                   Por outro lado, este tipo de atitude condescendente, tende a fazer surgir resistências à fala associativa seja por uma intensificação da transferência na mulher, seja na oposição à obrigação de se sentir grato no homem, oriunda do complexo paterno.

                   Mais fundamental, ainda, é a operação de deslocamento do sofrimento psíquico à soma empregada no seu esvaziamento. Assim, cara para o sujeito, é a manutenção da doença e da estupidez, nos sublinha Freud. O preço justo da sessão surge, assim, como algo que limita o gozo, permitindo que a fala em sua articulação com a pulsão sexual seja valorizada.

                   A arqueologia do monetário, de acordo com Julia Kristeva, remete as estreitas relações entre a moeda, o sagrado e a lei, constatadas pela Antropologia. Ao longo de um rito sacrificial são destruídos objetos ( planta, animal, ou mesmo seres humanos) e, pela brecha marcada pela perda material, é estabelecido um vínculo vertical com o o divino. Paga-se, assim, uma dívida com os deuses esperando-se deles proteção e recompensa. Ao mesmo tempo, o vínculo horizontal, tal qual Freud nos demonstra em Totem e tabu passa a constituir a lei da frátria, como avanço civilizatório. O objeto sacrificial é paterno. A incidência da operação dá-se sobre um gozo ilimitado.O próprio termo crédito diz respeito ao desejo “kredh-dh”. Desejo possibilitado pelo advento simbólico, resultante do ato sacrificial. A própria idéia econômica da recuperação de um investimento faz-se presente neste antecedente da moeda, que mostra o vínculo entre o monetário e o religioso.

                   São as boas contas que fazem os grandes amigos… O percurso psicanalítico evidencia a lógica da perda estruturante. A conta bem paga refrata uma dívida eterna em relação ao pai, permite ao sujeito uma desobjetivação frente ao desejo do Outro. Os cortes sucessivos dos pagamentos marcam a própria metonímia peculiar ao movimento desejante.

                   Também a transferência não é impermeável à questão do valor, posto que a função de agalma do analista, caixa de jóias dos objetos a do analisante, não pode prescindir do binômio caro=valioso, pregado na cultura. Temos aqui, porém, o perigo de uma apropriação indevida do reconhecimento de tal fator para a fomentação de uma imaginarização da causa analítica. Algumas análises e formações são procuradas pelo impacto fascinante que o intento de participação na esfera do burguês causa. É inútil dizer que os empreendedores de projetos falaciosos e caros agradecem. A transferência em psicanálise sendo simbólica dispensa os brilhos com que os objetos de consumo travestem-se de objeto a. Seus ganchos devem situar-se no rigor e na verdade da fala e da produção do analista.

                   Se a psicanálise insere-se no capitalismo, marca ao mesmo tempo seus limites e posiciona-se na contra-corrente da lógica do capital. Nosso saber é da ordem paterna, sendo a instalação do Nome-do-Pai uma condição para o advento do sujeito. Há uma incompatibilidade entre Psicanálise e capitalismo na medida em que este último oferece objetos de forma invasiva cuja visada imaginária seria a de obliterar a falta constitutiva do próprio desejo. Um sentido totalizante é oferecido, ali onde a praxis analítica preocupa-se com o esvaziamento do mesmo.

                   Entretanto, a necessária falta de pudor do psicanalista nas questões de dinheiro poderia funcionar como uma isca ao feitiço da lógica monetária e promover novos engodos com a vontade de gozar.



  • A transferência em relação à instituição



                   Sendo a questão do valor indissociável da transferência no tratamento, podemos pensar no que seria uma superposição desta lógica à uma transferência em relação à instituição. Tal transferência passaria de um lugar a outro e estaria em continuidade com a análise pessoal. A ancoragem do sujeito ao significante “psicanálise” fornece o campo de prontidão à transferência de saber.

                   A dessubjetivação ocorrida no percurso de uma análise avançada pode, talvez, impulsionar eleições de novos ideais que encontram, assim, um campo propício de instalação mesmo que não detenham a força alienante do início.

                   Pressupomos aqui uma articulação possível entre a reificação própria do capitalismo e a visão de alguns analistas sobre a posição inicial do analisante e candidato à formação como um objeto. Neste ponto de vista, a assunção à posição de sujeito no campo do Outro, dentro da fórmula do discurso do psicanalista, apenas se daria à partir de um avanço na análise. Nesta perspectiva seria necessário um trabalho semelhante ao do operário que só acederia à uma nova posição confrontando-se com as contradições do sistema que o alienou.

                   Ora, na medida em que uma instituição de psicanálise permanece acrítica quanto às leis do sistema onde se insere, podem ser desenvolvidos elos de justificativa teórica que visariam esconder, no caso, a própria vontade de gozo em que tal instituição foi lançada pelo discurso capitalista.

                   Sabemos da relação do amor, esta suposição de saber, com o hipnotismo e a presença deste fenômeno na constituição de um grupo coeso. Em Psicologia do grupo e análise do eu, Freud nos fala sobre o empobrecimento do eu e a valorização do objeto que acaba por deter todo o amor próprio do eu no processo amoroso. Este fator passa a ser constituinte da coesão grupal onde um determinado grupo de pessoas coloca um único objeto no lugar de seu Ideal do eu e mantém a unidade grupal pela identificação de uns com outros.

                   Na formação de um grupo encontramos, assim, um terreno propício à conjunção do fetiche do valor com um Ideal ao qual se supõe saber, também alienante. Acreditamos que algo em torno destas balizas sejam fundamentais para a compreensão de certas tempestades do movimento analítico e suas conseqüências. Pensamos no destino de alguns candidatos à formação que testemunhamos: surto, suicídio, parada na produção teórica, abandono da causa analítica.

                   Tal encaminhamento é avesso àquele de uma análise. O sujeito entra na transferência situando-se como amado, i(a), reflexo do eu ideal. O analista ocupa no lugar do Outro a posição simbólica de I (Ideal do eu). O amor de transferência produz-se quando o objeto a, que determina o desejo do sujeito vem a confundir-se com I.  O desejo do psicanalista opera a separação de a, permitindo ao analisante ultrapassar esta identificação a um Ideal e descola o objeto , verdadeira causa do desejo. O desejo do analista age, assim, no sentido inverso ao da transferência.

                   No momento em que as condições de suposição de saber mudam de um rigor teórico e de uma “eros-dicção” para uma banalização técnica é o vazio deste último fator que precisa de um revestimento fascinante, entorpecedor. O mesmo que opera a maquinação de fórmulas teóricas, passa pela intenção de ocupar o lugar do Um, utiliza-se de sedução e cooptação de seguidores, pleiteia um lugar de honra no movimento psicanalítico.

                   A psicanálise encontra-se, assim, ante o paradoxo de participar do capitalismo ao mesmo tempo em que tem o dever moral de limitar o gozo próprio ao sistema.

                   Neste sentido, acreditamos que as várias rupturas de Lacan com o movimento de escolas tiveram o alcance de revelar a verdade da causa analítica na contra-corrente do capitalismo, como a aglutinação corporativista e a mundialização.

                   A prática nos agrupamentos psicanalíticos, separada do caráter subversivo de sua causa, repete os modelos das corporações, imprimindo o selo do aliciamento de membros, da mistificação do ensino que, opaco, solidifica o traço místico do objeto ensino, impulsionando a suposição de saber a partir da reificação do sujeito candidato à formação. Recentemente, um analista de um grupo renomado internacionalmente indagou aos psicanalistas cearenses se os mesmos não estariam interessados em abrir uma franquia de sua escola.

                   O discurso capitalista caracteriza-se por um movimento circular, sem corte e sem impossibilidade. O modo de gozo transmitido pela tecnologia só pode ser pensado a partir de uma recusa da castração. No império de uma vontade de gozo, nada vem dividir a verdade.

                   Em Kant com Sade, Lacan situa a vontade perversa caracterizando-a a partir de uma leitura sadeana de um ditame republicano. Neste sentido, o direito do indivíduo implicaria no poder imperativo de gozar à vontade do corpo do outro: “Tenho o direito de gozar do teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei este direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar.”(LACAN, 1998, p. 780) Percebemos, aqui, uma antítese entre desejo e vontade de gozo, a última estando dependente dos ditames obscenos do Supereu. Na premissa sadeana encontramos a verdade do capitalismo em sua intenção de sabotar o desejo do sujeito para que o mesmo dilua-se na vontade do sistema.



  • A Psicanálise precisa existir.



                   Sabemos, com Freud, que a história da Psicanálise constitui-se como a história das resistências à Psicanálise. Não vemos porque, mesmo após os alertas de Lacan, estas resistências não ressurgiriam causadas pela virulência da verdade que nossa disciplina desvenda. Veríamos nós, após a morte de Lacan, o surgimento de uma nova onda resistencial?

                   Sem a pretensão de respondermos a esta questão, não podemos evitar de pensar em alguns eventos da atualidade que parecem sublinhar esta tendência. O mais grave deles, no Brasil, é o projeto nº3994/2000 que trata da regulamentação da profissão de psicanalista, de autoria do deputado evangélico Eber Silva. Verdadeiro ataque à Psicanálise, esta standartização de um ofício procura justificar-se apelando para o fim das “discussões estéreis e corporativistas entre os grupos existentes”. O próprio caráter de equivocidade da causa psicanalítica é aqui obliterado. Outros sinais mais discretos de um fechamento do Inconsciente surgem na própria produção psicanalítica: a redução do mercado editorial da área, o nível sprecário de alguns artigos, o mimetismo em relação ao estilo de Lacan, o efeito de sideração causado por tentativas falaciosas de inovação no campo psicanalítico.

                   A Psicanálise precisa, todavia, existir com seu contra-objeto (a castração) em um terreno onde a cura e a felicidade são oferecidas a baixo custo por evangélicos, carismáticos, psicobioenergéticos, terapeutas alternativos. Tentar manter a composição de seu ouro surge como tarefa ingrata na atualidade. Como competir com a medicalização do psíquico e seus remédios ante-monotonia? Um congresso psiquiátrico é, geralmente, financiado por empresas farmacológicas e tem no capital suas condições de existência. Como continuar existindo pautado, principalmente, no efeito dialético da verdade, suas incidências no gozo e na recomposição do desejo? Como na cultura do entorpecimento pode a psicanálise garantir seu lugar, na medida mesmo em que aponta para um mal-estar constituinte do sujeito?

                   Em Peut-être à Vincennes, texto de 1975, Lacan (2003) trata das condições necessárias para o ensino da Psicanálise na Universidade sem que a mesma sofresse as amarras do discurso universitário, onde o estudante, “astudado”, reproduz uma infinita alienação aos mestres. Acreditamos que o apelo à Universidade tenha sido, de qualquer forma, necessário à manutenção da causa analítica onde, com percalços, ela teria condições de sobrevivência.

                   Atualmente, muito da herança psicanalítica irradia-se através de cursos de Psicologia. Um grande número de membros constituintes dos grupos psicanalíticos é proveniente destes lugares. Tal fenômeno explica-se pelo fato da teoria psicanalítica constituir-se como um saber rigoroso, não superado por outros saberes.

                   Por outro lado, sua existência acadêmica pode retirá-la do eixo de sua causa: a modificação subjetiva. O viés curricular pode standartiza-la, apresentando-a como mais uma escola psicoterápica.O aluno pode sair com a ilusão de ter assimilado um conteúdo técnico, pronto a ser utilizado no trabalho clínico.



5. Considerações finais



            Dentro da prerrogativa de um retorno a Freud, Lacan se vê coagido a exercer uma crítica à situação da psicanálise em 1956. Em tal contexto, a transferência era trabalhada a partir de um engodo que a situava como uma constelação de sentimentos experimentada pelo analisante num dispositivo dual. Ela era separada de sua dimensão simbólica que a inscreve como um residual aderente às atualizações significantes do analisante.

            A perspectiva imaginária, instalada na psicanálise, de 1956 trazia para o centro da formação a necessidade do candidato identificar-se com o analista. Assim, o eu forte era visado no esquecimento das formações do inconsciente, por ele obstruídas. Objetivando minorar os problemas da psicologia do grupo na formação psicanalítica, Lacan passa a elaborar o conceito de passe.

            A problemática do passe insere-se dentro de uma elaboração sobre a infinitização da análise por sua via simbólica. Tornou-se necessário pensar o final de análise em sua articulação com o real. Embora a instalação do dispositivo do passe tenha revelado “impasses”, nenhum analista pode prescindir daquilo que ele coloca: a dessubjetivação como condição para se ocupar o lugar de analista.

            A análise em intensão tem como decorrência lógica a extensão. A dessuposição de saber do analista faz com que a vontade de saber seja transposta para a escola, na via da produção. Nessa perspectiva, se a análise aponta para um afunilamento do sentido, este último encontra seu limite nas referências reais do simbólico. Daí uma certa tendência do psicanalista de ocupar-se do escrito, como uma atividade suplementar à sua própria análise.

            Entretanto, as prerrogativas de uma escola de formação, com a idealização de um líder ou uma cristalização imaginária do saber, podem operar no sentido inverso daquele onde desemboca uma análise, ressuscitando traços da verticalidade universitária e produzindo um retorno do sujeito à alienação da qual uma verdadeira análise deveria tê-lo libertado. Se mesmo o estagiário-clínico deve recorrer a uma formação “extra-muros”, seria nefasto para o analista percorrer a via inversa.



6. Referências bibliográficas:

COUTINHO JORGE, M. A. Sexo e discurso em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

DARMON, M. Le désir.du psicanaliste, site freud-lacan.com. Acesso em: 30 julho de 2003.

FREUD, S. Artigos sobre técnica(1911-1915 [1914]). Rio de Janeiro: Imago/ESB, 1978, v. XII.

__________Psicologia de grupo e análise do ego (1921) Rio de Janeiro: Imago/ESB, 1978, v.XVIII.

KRISTEVA, J. De l’euro à la psychanalyse. Site peack.fr, sem data. Acesso em: 5 agosto de 2003.

L ACAN, J, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

_________ Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003








1 comentário:

vanetiawah disse...

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