terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A Dama na pintura de Caravaggio

Orlando Cruxên *

* Professor associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Doutor pela Université de Paris XIII. Psicanalista do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise (secção Fortaleza).

1. Introdução:

            Um dos pontos comuns entre o processo sublimatório de Leonardo da Vinci e aquele do também pintor italiano Caravaggio, é o papel desempenhado pela Dama. Na obra de Leonardo, a Dama apresenta-se velada, inacessível, como tradicionalmente o fora no discurso do amor cortês. Em Caravaggio, a Dama revela elementos de sensualismo e putrefação. Lena, uma prostituta, servia de modelo para as representações da virgem. Um dos trabalhos mais marcantes do pintor, A morte da virgem, causou polêmica dado que Maria fora representada em estado de decomposição.

            O encaminhamento de nossas pesquisas revelou que Freud abordou um modelo de representação do objeto amoroso que nos fornece subsídios para entendermos a forma como o mesmo aparece em determinadas representações pictóricas e revela a economia do desejo do sujeito.

            Vejamos as considerações freudianas que nos permitem pensar o estatuto do objeto em Caravaggio, em contraposição a seu surgimento em Leonardo.

2. O rebaixamento do objeto na vida amorosa:

            Consideremos, por um instante, essa hipótese: no modelo de sublimação apresentado por Leonardo, uma dignidade é conferida ao objeto. Trata-se da vertente do amor terno que surge segundo a perspectiva do amor cortês. O tipo de pintura de Leonardo acalma as pulsões velando o objeto inacessível do espiar. Contudo, ao contrário do que postulou Freud, é possível que a estruturação de Leonardo fosse próxima da perversão.

            Existe uma pintura que desperta as pulsões, como assinalou Lacan no Seminário XI. Se tomarmos como referência a dialética entre a elevação e o rebaixamento do objeto a partir de uma clivagem do eu, poderíamos pensar uma outra “sublimação”. Trataria-se, muito provavelmente, de um matema de sublimação que não permite um avanço no trabalho com a fantasia, fórmula contrária à de Leonardo.

            Nisso que propomos como um segundo modelo de sublimação, ligado também ao homossexualismo, o conceito de idealização parece ter uma função fundamental. A idealização é tenazmente articulada à perversão, na medida em que o objeto, no caso implicado, é um objeto que visa a franquia de um gozo mais direto ou imediato.As vezes, a sublimação se posiciona contra a sexualidade mas outras vezes, ao contrário, as duas caminham de forma complementar.

            A dialética entre o rebaixamento e a elevação do objeto na economia psíquica foi sublinhada por Freud em O recalque. Ele comenta que os objetos preferidos dos homens, seus ideais, resultam das mesmas percepções e experiências que os objetos que lhes causam mais horror; estes não se distinguem uns dos outros, originalmente, que por ínfimas modificações. Pode ocorrer, como na gênese do fetiche, que o representante pulsional originário tenha sido dividido em dois pedaços, onde um sofreu o recalque enquanto o resto, precisamente em razão desta íntima conexão, destinou-se à idealização.

            Em tal contexto, o objeto da representação pictórica pode funcionar como um objeto de pulsão. Os objetos fetiches revelados pela clínica confirmam essa perspectiva.

            Os principais textos de Freud que trabalham a divisão característica da psicologia masculina estão reunidos nas suas Contribuições à psicologia amorosa I, II e III. Apesar das diferentes datas de publicação, tais textos formam uma unidade. Eles dialogam entre si.

            Em Contribuições à psicologia da vida amorosa I - Um tipo particular de objeto no homem (1910), Freud se interroga sobre certas características necessárias para que o objeto seja acessível enquanto objeto de amor:

1- Existe a necessidade de um triângulo amoroso que inclua o “terceiro lesado”. Freud escreve sobre esta condição. A mesma exige que o sujeito não escolha jamais como objeto de amor uma mulher que seja ainda livre, dito de outra forma, uma jovem ou uma mulher só, mas exclusivamente uma mulher sobre a qual um outro homem; marido; noivo ou amigo pode fazer valer os direitos de propriedade.

2- A mulher casta não exerce jamais a atração que a elevaria à posição de objeto de amor. Este papel é deixado à uma mulher de má reputação. Freud denomina essa condição “o amor pela puta (putain)”.

3- O ciúme participa ativamente desse tipo de amor. Através do ciúme, a mulher adquire seu mais intenso valor e a paixão culmina. O ciúme não se dirige contra o possessor legítimo da mulher mas contra estranhos que possam atrair a mulher.

            O trabalho psíquico resultante daí implica um alto gasto de energia. Ele apresenta um caráter compulsivo. As relações amorosas deste tipo tendem a se repetir várias vezes na vida, formando uma longa série. Neste gênero de amor, o parceiro tem necessidade de salvar a mulher em questão. Ele tenta conduzi-la ao caminho da virtude.

            A fonte desta conduta amorosa é atribuída por Freud a uma ligação prolongada com a mãe que ultrapassaria a puberdade. A mãe, enquanto objeto insubstituível, manifesta-se em cada um dos objetos que formam uma série infinita, infinita porque cada substituto faz lastimar a ausência de satisfação que se repete.

            A contradição entre os representantes mãe e prostituta não tem valor do ponto de vista do inconsciente. As leis de ausência de contradição do sistema Ics estão aqui presentes. Aquilo que, no Consciente, apresenta-se em dois termos opostos, seguidamente não faz que um no Inconsciente.

            Em tal quadro edipiano onde o pai ocupa o lugar do terceiro lesado, a masturbação da puberdade contribui para a fixação da fantasia .

            Em Sobre o mais geral dos rebaixamentos da vida amorosa (1912), Freud avança sobre a questão de uma clivagem masculina no amor.

            Aqui, ele demonstra que a dignidade da mulher pode causar impotência psíquica no homem. Tal particularidade do objeto causa inibição da potência sexual. Do ponto de vista psíquico ela suscita uma ligação antiga à “fixação incestuosa não superada à mãe ou à irmã.”          Como resultante desta modalidade de escolha objetal temos a separação de duas correntes que compõe a vida amorosa: a corrente terna e a corrente sensual.

            A corrente terna, apoiando-se nos interesses da auto-conservação, corresponde a escolha primária do objeto. Ela fornece o modelo da escolha objetal posterior, feita após a puberdade. A ternura desliza na direção desses novos objetos. De acordo com Freud, o homem deixará pai e mãe - como o prescreve a bíblia- e seguirá sua mulher: ternura e sensualidade são, então, reunidas. Os mais altos graus da paixão amorosa sensual implicarão a avaliação psíquica a mais alta ( a superestimação normal do objeto sexual da parte do homem).

            Dois fatores podem mudar esse curso da vida amorosa: a quantidade de frustração real e o alto investimento anterior, uma alta quantidade atrativa dos objetos infantis. A combinação desses dois fatores contribuirá no mecanismo de divisão psíquica. A libido volta-se contra a realidade, é incorporada pela atividade fantasiosa (introversão), reforça as imagens dos primeiros objetos sexuais e se fixa neles. Mas a proibição do incesto força a libido dirigida a esses objetos a permanecer no inconsciente. A corrente sensual, pertencendo agora ao inconsciente, manifesta-se nos atos masturbatórios e contribui, assim, a reforçar esta fixação.

            Assim, toda a corrente sensual pode exprimir-se através da fixação às fantasias incestuosos inconscientes, o que resulta na noção de impotência psíquica formulada por Freud.

            Afim de que as ligações incestuosas não apareçam, o indivíduo parcializa a escolha de objeto evitando a corrente terna. Dessa forma, alguém que poderia adquirir um alto valor psíquico não chega a despertar uma paixão erótica. Freud nos diz que a vida amorosa de alguns homens permanece clivada de acordo com duas direções que a arte personifica com o amor celeste e o amor terrestre (ou animal). Lá onde eles amam, eles não desejam e lá onde eles desejam, eles não podem amar.

            O rebaixamento psíquico do objeto sexual visa, portanto, a articular a corrente sensual a um objeto real. Ele indica, também, a conservação de “objetivos sexuais perversos”.

            A clivagem masculina, e sua consequente impotência psíquica, é muito mais vasta do que se pensa habitualmente. Ela constitui um traço da vida afetiva do homem na modernidade.

            Freud vai mais longe ainda no seu raciocínio. De uma certa maneira, superar o respeito pela Dama é uma condição para o acesso ao desejo viril: para ser na vida amorosa verdadeiramente livre, e daí feliz, deve-se ter superado o respeito pela mulher e ter-se familiarizado com a representação do incesto com a mãe ou irmã.

            No que diz respeito à clivagem masculina, Freud articula as suas resultantes à sublimação. Esta mesma incapacidade da pulsão sexual de procurar a satisfação sexual mais completa, desde que ela é submetida as primeiras exigências da civilização, torna-se a fonte de obras culturais as mais grandiosas. Elas são concluídas por uma sublimação sempre mais ousada de seus componentes pulsionais.

            Cremos que a fórmula estabelecida por Lacan sobre a Dama elevada no processo de sublimação, encontra seu antecedente nos textos freudianos sobre a psicologia da vida amorosa.

3. Considerações finais:

            Problematizamos nosso raciocínio da seguinte forma: a dinâmica estabelecida por Freud sobre a clivagem masculina, ilustrada pelas relações com o objeto na vida amorosa, pode, se nos vincularmos as conseqüências dos textos que acabamos de discutir, resultar, seja na elevação do objeto na representação artística, seja em seu rebaixamento.

            A Dama sublime do amor cortês aparece no matema da sublimação de Leonardo. Descobrimos, no caso, a dignidade da Coisa fundada sobre a corrente do amor, a inibição sexual característica desse processo e o velamento do objeto. Em uma primeira aproximação, consideramos que o objeto na obra de Leonardo, mesmo sendo enigmático, não desperta as pulsões.

            Entretanto, uma certa pintura faria um apelo pulsional. Ela seguiria os contornos do modelo do rebaixamento do objeto na vida amorosa do homem, onde o objeto é sexualizado. Aqui, o objeto consegue a franquia de um gozo, sendo idealizado em seus componentes sexuais.

            As características desse gênero de escolha, como a compulsão e a tendência a formar uma longa série de objetos rebaixados, pode encontrar suas resoluções na produção pictural, o que parece se impor na pintura de Caravaggio.

            Nesse tipo de clivagem masculina uma pessoa que ocupa um lugar psíquico altamente valorizado não desperta excitação erótica. A Dama, na pintura tanto quanto no amor cortês, funciona como uma barreira. Ela pode assumir, no sentido de um ato de interdição, a função paterna. Desta forma, encontramos uma inversão de função relativa ao Édipo. A Dama é o amor celeste que sedimenta a barreira contra o incesto.

            O caráter instável do objeto-mulher, a possibilidade de que ele seja rebaixado, implica a perpetuação de objetivos sexuais perversos. O excesso daquilo que escapa à uma castração eficaz converte-se em moeda cultural utilizada como sublimação.

            Devemos considerar que um papel da Dama na pintura, consiste em se vestir de tabu. Esse tabu implica a proteção narcísica do homem naquilo que concerne sua sexualidade.

            A própria mulher contribui à sua inacessibilidade constituindo-se no véu da Virgem, cuja representação, no dizer de Freud, é cara a todo artista. Caravaggio, entretanto, fez do rebaixamento da Dama o motor do caráter revolucionário de sua pintura.

4. Bibliografia:

FRÈCHES, j. Le Caravage – peintre et assassin, Paris, Gallimard, 1995.

FREUD, S. Le Refoulement. Métapsychologie. Paris: “Folio” Gallimard, 1968.

_________Contributions à la psychologie de la vie amoureuse - Un type particulier de choix d’objet chez l’homme. La Vie sexuelle. Paris: PUF, 1989.

__________ Sur le plus général des rabaissements de la vie amoureuse, La Vie sexuelle. Paris: PUF, 1989.

__________ Le tabou de la virginité, La Vie sexuelle. Paris: PUF, 1989.

LACAN, J., Le séminaire, livre XI, Les Quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Seuil, Paris, 1975.




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