terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Artistas do sonho

            O artista precede o psicanalista. O analista estuda a obra de arte, vendo na mesma as vias de surgimento do inconsciente que é, antes de tudo, trabalho. A arte ensina ao psicanalista, assim como Sófocles ensinou o Édipo a Freud ou como os escritores criativos revelaram a função da fantasia no processo literário. Não teria sentido psicanalisar uma obra, nem mesmo o seu autor. O trabalho artístico já é uma forma de interpretação. Assim, Frida Kalo, através de sua pintura, produziu a partir de sua dor, inundou-nos de cor e realizou uma travessia, indicativa de sua modificação subjetiva advinda de sua produção.

            No caso da arte contemporânea, existe uma troca profícua, uma interface, onde psicanálise e arte dialogam sem recobrir-se. O gancho dessa interseção situa-se no tratamento dado ao inconsciente, onde cada um dos dois campos adentra por um afluente distinto: uns artistas do sonho, outros artesões do sentido dos sonhos.



1. Zonas de interseção:

            Tanto a arte como a psicanálise se dirigem à realização do desejo. O que caracteriza a sublimação artística é um destino pulsional que evitou o recalque. Assim o criador tem acesso a fontes e objetos pulsionais sem tantas restrições originárias da censura. Ele pode nutrir-se de uma potência, perdida no sintoma neurótico dada a inibição ou a angústia. Fezes, sêmen ou mesmo cadáveres surgem nas artes plásticas questionando os limites da cultura.

            A função de uma análise confronta o sujeito com seu desejo, infantil e indestrutível, através dos significantes que o compuseram. O paciente desfia as várias falas desse desejo ao longo de um processo de análise. Assim, ele recupera uma certa potência perdida no comprometimento com o sofrimento neurótico

            Tanto a psicanálise quanto a arte ratificam a veracidade do pulsional, seja na vertente do sexual como naquela do mortífero.

            Ambas lidam com o estranho. O estranho tem seu cerne no que é mais familiar. Nosso centro é excêntrico posto que somos constituídos a partir de um Outro. Arte é tudo aquilo que incomoda, nos legou Nietzsche. Ela remete a um impossível da representação: castração e pulsão de morte ( conferir o quadro Os embaixadores, de Holbein). Nisso reside o incômodo.

            O olhar tem fome. Temos a pulsão de espiar. Um tipo de pintura visa apaziguar o olhar, oferecer pastagem a um olhar que se desarma. Um outro tipo, apela mais diretamente ao pulsional, acorda as pulsões, tendo uma função provocativa. Lacan situa a origem dessa pintura no expressionismo.

            O início do século vinte trouxe o deslocamento retiniano promovido pela psicanálise e a arte. Houve uma desqualificação do olhar enquanto correspondência unívoca entre olho e imagem. Objetos difusos, rasuras na imagem apontavam o ponto cego do visual. O campo da visão possui um nada constituinte que é o lugar vazio que possibilita a própria representação. No Seminário VII, Lacan nos fala de uma paciente, Ruth Kjär, acometida de depressão depois que um quadro que lhe era familiar houvera sido retirado de sua sala. Ela, então, foi confrontada com um vazio que a congelara. No lugar onde estivera o quadro, a paciente pinta um outro, criando algo capaz de acalmar o furo em seu aspecto voraz. A criação se processa em torno de um vazio.

            Se tomarmos como referência o fato de que toda obra diz ou mostra mais e menos que sua intenção, temos o fato de que a mesma é uma manifestação do sujeito para além do que o eu, em seu parentesco com o sistema consciente, pode querer fazer crer. Assim, elementos do manifesto surrealista, como Breton assinala, são extensíveis a criadores alheios ao estabelecimento de seus princípios e fora de seu período histórico. Olhos furados de Édipo rei e olho sob a navalha no Cão andaluz de Buñuel encontram-se no tempo da estrutura, aquele da cena inconsciente.

            Se o Renascimento tardio esperava da pintura uma reprodução fidedigna da natureza, a arte contemporânea vai se caracterizar por um questionamento sobre a imagem. Os espelhos serão quebrados, os contornos serão diluídos, os suportes serão mais importantes que a figura. O belo, como barreira última frente ao horror, perderá seu status. O caráter perturbador do feio e do abjeto será cultuado.



2. Disjunções

            Freud teve uma formação clássica nos moldes da ciência natural e da formação humanista. Sempre recorreu à arte posto que a mesma se fundamenta em textualidades passíveis de interpretação. Além do mais, o fazer artístico demonstra a colaboração entre os sistemas psíquicos na modulação em que o recalcado vem à luz.

            Pensando a psicanálise como uma arqueologia onde a ruína é o rastro que fundamenta a construção analítica, Freud estudou nossa tradição ocidental grega, debruçou-se em nossos mitos constituintes. Dialogou com Shakespeare e Goethe, entre outros. Inquietou-se com o Moisés, de Michelangelo. Considerava seu estudo sobre Leonardo da Vinci como suas mais belas páginas. Dele extraiu a idéia de uma androginia resultante da crença na mãe como dotada de atributo fálico.

            A psicanálise acabou forjando elementos que passaram a fazer parte do legado da contemporaneidade. Hoje, se alguém comete um lapso, o ouvinte logo pensa em outro sentido da mensagem. O surrealismo parece ter sido o movimento cultural que mais pesquisou e assimilou traços da psicanálise. O princípio psicanalítico da livre associação inspirou a escrita automática proposta por Breton ou os desenhos automáticos de Masson. No Primeiro manifesto do surrealismo, ditado em 1924, Breton coteja automatismo e associação livre. Ao definir surrealismo ele o coloca como um “automatismo puramente físico através do qual se pretende expressar, verbalmente, por escrito, ou de outra forma, a verdadeira função do pensamento. Pensamento ditado na ausência de qualquer controle manifestado pela razão, e fora de quaisquer preocupações estéticas e morais[1].”

            Uma tela de René Magritte, de 1937, intitula-se O princípio do prazer, conceito freudiano. Ao pintar o retrato angelical de um bebê, Dali inclui um rato ensangüentado preso em seus dentes. Essa colagem, de 1939, traz como inscrição do artista “o perverso polimorfo de Freud”[2].

            O estudo freudiano sobre a Gradiva de Jensen, teve uma imensa repercussão sobre os surrealistas. Entre 1930 e 1937 Gradiva tornou-se uma espécie de matriz da musa surrealista. Pintada várias vezes por Dali, Gradiva passou a ser um codinome da esposa do pintor.[3] Gradiva, que significa aquela que avança tornou-se musa propulsora do movimento surrealista tanto quanto as histéricas de Freud.

            Breton, estudante de psiquiatria, encontrou-se com Freud em 1921, em Viena. O encontro foi decepcionante para o poeta. Freud tratou de encurtar aquele face-à-face. Após a entrevista, a esposa de Breton tratou de levantar-lhe o moral. O encontro de Dali com Freud deu-se através de Stephan Zweig, em Londres, terra do exílio de Freud. Freud reconsiderou sua posições sobre o surrealismo a partir desse encontro. Os “ingênuos olhos de fanático” bem como a “ inegável mestria técnica” de Dali seduziram Freud.

            Freud, entretanto, não tinha clareza sobre as intenções do surrealismo. Podemos mesmo dizer que ele o estranhou. O sonho para a psicanálise é o relato do sonho somado as associações do paciente. A imagem do sonho é uma letra a ser decifrada. O imagético condensa uma fala cifrada. Confrontar-se com a valorização da imagem pode ter perturbado Freud. Aqui temos uma disjunção, uma separação entre surrealismo e psicanálise. A escrita automática e  a pintura espontânea possuem uma visão romanceada (necessária à arte) de liberdade que a psicanálise não possui. Ao liberar o paciente dos determinismos lógicos, dos princípios ordenados da consciência, o psicanalista não encontra o irracional. Ele encontra uma outra lógica diversa mas muito estruturada, aquela do inconsciente. Ele sabe que a imagem é um enigma que remete a uma fala. Uma imagem muda também pode ser condensadora de gozo, fonte de sofrimento para o sujeito. “Decifra-me ou te devoro”, colocou a esfinge para Édipo quando este adentrou Tebas.



3. Lacan e os surrealistas

            Lacan, esse freudiano radical, manteve uma freqüente troca com os surrealistas. Em seus Escritos cita escritores surrealistas como Breton, Crevel, Leiris, Quenau, Prévert[4]. Ele se serve de Prévert para mostrar como na sublimação trata-se de elevar o objeto à dignidade da Coisa. Prévert criara uma fileira de caixas de fósforo em torno de sua lareira. Lacan vai demonstrar que a banalidade desse objeto cotidiano mudará de status a partir do momento em que ele ganha relevo na mão do artista. Um objeto comum torna-se uma grande coisa[5]. O mesmo acontece com o ready-made A fonte, de Duchamp. Uma dignidade é dada a um urinol invertido. O abjeto transforma-se em objet d’art.

Durante a escrita de sua tese de doutorado  Da psicose paranóica em sua relações com a personalidade, Lacan foi um fiel leitor de Le surréalisme au Service de la Révolution, onde eram estudados os elos entre a paranóia e a criação poética[6].

Na ocasião de seu primeiro encontro com Salvador Dali, o pintor o recebeu com um esparadrapo na boca. Lacan adotou uma posição de aprendiz, onde escutou o doutrinamento do artista. O psicanalista, como Dali na ocasião, nunca está onde o paciente o espera...Posteriormente, Dali adota a tese de Lacan como um dos fundamentos de seu método paranóico-crítico. Esse método, foi definido como “um método espontâneo de conhecimento irracional baseado na associação crítico-interpretativa dos fenômenos  delirantes.[7]”. Aimée, as irmãs Pappin, esses estudos de caso presentes na tese de Lacan, se tornaram musas do surrealismo.

O ato do psicanalista, na medida em que ele se inscreve num não sabido, tem um parentesco com o horror, com algo da ordem do surreal, do cerne real embutido em todo sonho. Psicanálise e arte são campos que se perspassam, que dialogam. Ambos são atravessados pelo que acham no caminho, campos abertos à visita da surpresa e ao surgimento do humor.



[1] KLINGSÖHR-LEROY, Cathrin. Surrealismo. Lisboa:Taschen, 2004, p. 6.
[2] JORGE, M.A.C. “Psicanálise e surrealismo”. Sexo e discurso em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p.121.
[3] ibidem, p. 122.
[4] Ibidem, p.136.
[5] CRUXEN, O. A sublimação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004
[6] JORGE, M. A.C. Ob. Cit., p. 137.
[7] Ibidem, p. 137.

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