terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A criação poética e sua incidência sobre o gozo

Orlando Cruxên

“ Ce Charme! Il prit âme et corps,
Et dispersa tous efforts.
Que comprendre à ma parole?
 Il fait qu’elle fuie et vole[1].”
                                                                                                          Rimbaud





Por ocasião do V Encontro de Psicanálise da U.F.C., no ano passado, discutimos o final de análise, do tratamento, sob o termo A cura. O tema deste ano, agora num contexto mais amplo de um congresso nacional, é O gozo. Numa perspectiva onde coloca-se a transferência de trabalho, propomos um deslocamento entre estes significantes: a cura, o gozo. Uma fórmula, assim, surge-nos: o final de análise deve provocar uma modificação no gozo do analisante. É esta assertiva que guiará, aqui, nossa reflexão.





1.      Lacan e o discurso poético: por uma nova maiêutica.



Uma discussão lacaniana adiantada sobre o termo gozo, dá-se no Encore, Mais, ainda. A palavra encore, tal como surge no Seminário XX, é articulada à erótica, ao que se passa no leito entre um homem e uma mulher. En-corps, no corpo, daquele que está num leito, mesmo que o leito em questão seja o divã. Encore é uma palavra usual que a mulher francesa emprega ao fazer amor, significando, assim, uma insaciabilidade, um aspecto infinito do gozo feminino. Ao pontual orgasmo masculino responderia um gozo impreciso, não localizável que, talvez, os sexólogos sonhassem em esclarecer no questionamento sobre o orgasmo múltiplo feminino. Mas o erotismo articula-se à morte, como bem o demonstraram Freud, Bataille e Lacan.

Ao falar de gozo, Lacan opera sobre o gozo. Ele acolhe a perspectiva analisante, lida graciosamente com os equívocos linguageiros, mantém os paradoxos do sentido antitético da palavra gozo, ciente de que uma verdade terá irrupção na pulsação de seu discurso. Estamos numa perspectiva do witz, do dito espirituoso onde significantes do Isso se fazem gozados para burlar um aspecto categórico do supereu.

Não menos rigoroso por isso, Lacan é poeta. Por um remanejo incessante dos signifiantes, ele cria um novo discurso: um novo amor, disse Lacan parafraseando Rimbaud. Ora, este amor, longe da ambição oceânica fusional com a cara metade, evoca o impossível da complementaridade sexual e a retomada de um gozo do sentido.

Aquele que o escuta, mesmo na leitura, só pode ser atravessado por este tipo de discurso aberto. Uma maiêutica é convocada ao discípulo, o que Milner chamou de a função protreptique dos seminários de Lacan: desconstrução da doxa, uso de alusões, de ornamentos literários. O que Lacan provoca no ouvinte-leitor é um apego ao saber que não se sabe. Ali onde cada um deverá produzir algo, onde teoria e sujeito estão indissociados. O seminário joga o leitor na tansmissão de saber sem permitir a colagem a um saber obturador, nem a figura de um mestre (Lacan), já que este está sempre lá onde não se espera.



2.      Do gozo como inércia ao real que desperta.



Na obra freudiana o gozo pode ser pensado como uma inércia, algo que obstrui o desfile de significantes em sua articulação com o desejo. Dentro disto estaria o postulado freudiano da primeira tópica que afirma a angústia como estase da sexualidade. Tal fórmula pode nos fornecer pistas sobre a relação desta estase com o êxtase em determinados estados psíquicos. Do ponto de vista da clínica, os ganhos secundários com a doença revelavam a Freud o apego do sujeito ao mórbido.

Pensando o gozo sob a luz da terminologia freudiana, teríamos o mesmo como modificado na segunda tópica, quando ela passa a incorporar a noção de mal, próprio da pulsão de morte e indissociável da sexualidade. Aqui, o conceito de masoquismo erógeno é ilustrativo, apontando para uma tendência humana ao aniquilamento.

Por várias vezes Lacan contrapôs gozo e desejo. Em Kant com Sade, a vondade de gozo pode ser lida como a fidelidade a um supereu apático e categórico que só poderia levar a destruição da vítima e do algoz.

Alguns anos depois, no Seminário XI, considerado uma virada no seu ensino, Lacan parece conduzir-nos a pensar o gozo como o real que desperta. A pulsão de morte pode, então, ser pensada como inovadora: uma alavanca onde, a partir de um impossível reconhecido como tal, o discurso do analisante modifica-se, sofistica-se numa ficção elaborada que revela um amor pela língua. O sujeito poderia, assim, utilizar-se de um intolerável do gozo, de uma “temporada no inferno”, no processo final da análise.

Se a rocha da castração vai surgir nos sonhos como o real que nos faz despertar, um real mais concreto que a realidade, o sujeito é conduzido na análise a confrontar-se com o furo do simbólico. O sonho relatado por Freud em A interpretação dos sonhos, do pai cansado que dorme enquanto o corpo do filho é velado no quarto ao lado, tem como mensagem oracular a frase que desperta:"Pai, não vês que estou queimando?" Ela seria a visada de uma análise, o momento em que o simbólico mostra-se como litoral, borda do real. Dimensão trágica de uma análise, se a frase pode ser interpretada como a insuportável culpa do pai pela morte do filho, a frase não se esgota aí. Ela é uma enunciação no estilo do semi-dizer poético. Sria sua não compreensão que permitiria o circunscrever de uma ponta de real? Aqui, o mortífero do amálgama entre real e gozo seria um trampolim para a cadeia significante- entre luto e desejo.



3. A criação como instalação de um novo discurso.



O imperativo categórico do supereu é redimensionado numa análise. Ao “Jouis!” (Goze!) do supereu, o sujeito pode responder com “J’ouis un nouveau sens” “ Ouço um novo sentido”.Desde o trabalho de Freud sobre o witz, o dito espirituoso, o bem dizer é da ordem de uma elaboração sofisticada que relança o sexual; numa espécie de drible bem sucedido em relação à censura.

O que o poeta pode nos ensinar é que todo um trabalho com as malhas significantes é necessário para que o sujeito destitua o tirano em seu pedido impossível de gozo. Pedido que encontra fidelidade na figura do sádico.

Tendo como referência a elaboração do dito espirituoso, a análise aponta para a criação de um novo discurso, um novo laço social.

Aquilo que alguns poetas marcaram em suas belas páginas sobre a criação de sentido a partir de uma descontrução, da manutenção do paradoxo em seu amálgama com o real pode ser vinculado a uma reflexão sobre o  processo analítico.

A psicanálise, como talking cure, pode importar algumas sacações da poesia contemporânea, writing cure: O rigor do equívoco permite a irrupção da letra em suas relações com o gozo, permitindo aí um relançamento do discurso.

Rimbaud escreveu: “ Quero ser poeta (…) trata-se de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos.” Assim, um amor para além da fusão imaginária, da complementaridade sexual ou do afogamento do sujeito no Outro, estará por ser reinventado.

O amor da diferença, assim, não visaria a pertinência à grande lei da Coisa e sua crueldade, mas reconheceria no feminino uma verdade impossível de formalizar.

A última etapa do ensino de Lacan nos aponta a possibilidade da facção de nós singulares para além de uma palavra última que possa redimir o analisante. Estes nós, novos recalcamentos, seria a garantia de surgimento do sujeito que utiliza o seu sintoma, synthome, com outro sentido. É que o significante, sendo um semblante, encontra sua melhor via numa “verdade inventada”.

A relação do poeta Rimbaud com  a letra, pode revelar o vínculo da letra com os gozos, metaforizados através das cores: “A negro, E branco, I vermelho, U verde, O azul : Vogais”. As cores, como os gozos, resistem à formalização, até a chegada do poema.

A poesia é verde, U-vert-e, ouverte, aberta.



Créditos: Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da U.F.C. Doutor em Psicologia (Psicopatologia e Psicanálise) pela Université Paris XIII. Psicanalista. Membro-fundador do Corpo Freudiano de Fortaleza – Escola de Psicanálise.









[1]«  Este Charme ! Ele tomou alma e corpo,
      E dispersou todos os esforços.

      O que compreender de minha palavra ?
     Ele faz com que ela fuja e voe. »
RIMBAUD , A., Derniers vers, L.G.F., Paris, 1984.

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